#4. Um bicho solto domesticado?
Resenha de "O Mundo Dá Voltas", último disco do BaianaSystem
BaianaSystem, O Mundo Dá Voltas (Salvador: Máquina de Louco, 16 jan. 2025)
Em apenas 16 dos 365 dias de 2025, já tivemos o privilégio de poder escutar o que é certamente um dos melhores discos nacionais que será lançado no decorrer de todo este ano.
Para começo de conversa, o álbum tem participações estelares: Gilberto Gil, Emicida, Melly, Seu Jorge, Manoel Cordeiro, Pitty, Anitta e várias outras. Isto demonstra como o BaianaSystem se tornou um hub admirado por inúmeros artistas.
Eu vejo este disco como uma explosão de criatividade musical da banda, principalmente porque as colaborações parecem ter permitido catapultar inovações estéticas para além daquele conhecido padrão centrado na característica voz rouca do brilhante Russo Passopusso e na mistura de rock, rap e pagode baiano que costumava marcar os discos anteriores. Nem por isso, o novo álbum deixa de ter coerência estética e política. Aliás, os instrumentos de sopro são parte desta unidade, dando gravidade e densidade ao disco como um todo. Como então caracterizar tal projeto e unidade? Acredito que existam ao menos dois aspectos: em primeiro lugar a complexa relação que a banda estabelece com o mercado musical; e, em segundo, a dimensão propriamente estética e política em torno de determinadas espacialidades e temporalidades.
A categoria de midstream - algo localizado entre o mainstream e o underground - me parece traduzir não apenas o lugar ocupado pelo BaianaSystem no mercado ou no campo musical brasileiros, mas também uma autoconstrução consciente que transforma um aparente não-lugar em um entrelugar, que se torna, por sua vez, produtivo para engendrar novos lugares e horizontes. Isto se torna formulado de maneira mais explícita na faixa-símbolo "Cobra Criada / Bicho Solto" (que não chega a ser uma versão da música da Pitty e sim uma composição inédita que a cita): "Eu me domestiquei / Pra fazer parte do jogo / Mas não se engane, maluco / Continuo bicho solto".
O que poderia significar adaptação sem, como é dito mais a frente, gentrificação ou gourmetização? O oxímoro de uma domesticação sem deixar de ser bicho solto. Isto implica que o interlocutor da "cobra criada" (interpreto que o BaianaSystem se refere a si mesmo e que o “jogo” é a indústria cultural) é um "maluco", alguém que, portanto, também não está gourmetizado, talvez um público-ouvinte idealizado ou projetado pela banda - procura-se criar então um circuito cultural entre produção e recepção, uma espécie de acordo ou compromisso que busque garantir que o midstream não vai se mainstreamizar (como ocorreu em outros casos, inclusive de artistas nordestinos), estando ainda fielmente conectado às loucuras, maluquices, desvios e inovações enraizadas na contracultura, no underground.
Em "Balacobaco" também há uma reflexão sobre o midstream (ironicamente cantada por ninguém mais, ninguém menos do que Anitta, cuja participação foi criticada nas redes sociais por fãs mais antigos da banda e autodeclarados revolucionários): "Eu sei que eu preciso das notas / Eu sei que você não me nota / Eu sei que esse mundo dá voltas" - existe um reconhecimento da necessidade por dinheiro vindo da indústria cultural para a sobrevivência material, mas também um incômodo pela falta de visibilidade pública; por outro lado, a esperança ou expectativa de que o horizonte musical e político se transforme no futuro acabam sendo confirmadas com a repercussão do disco, tamanha a centralidade adquirida pela banda no campo musical, nos carnavais (haja vista a massificação de público nas itinerâncias do Navio Pirata para diferentes cidades), nas colaborações, nos festivais, nas plataformas, nas entrevistas, etc.
Salvador, Bahia, é o alfa e o ômega do disco (respectivamente em “Batukerê” e “Ogun Nilê”), mas a banda viaja através de diferentes faixas pelo Brasil: o rap paulistano de Emicida, a Praia do Futuro em Fortaleza, a guitarrada paraense de Manoel Cordeiro (vejo a faixa “Palheiro” como um afluente do universo musical do álbum instrumental Estado de Espírito, gravado por Manoel com Roberto Barreto, guitarrista do BaianaSystem, com produção de Pupillo). E também viaja pelo mundo, em especial a América Latina, como na participação da cantora “brachilena" Claudia Manzo, e, em segundo lugar, a África, como no rap do português Dino D'Santigo, filho de pais cabo-verdianos. Renomear nosso continente como Améfrica Latina (em “Porta-Retrato da Família Brasileira”, musicalizando o conceito cunhado por Lélia Gonzalez) ou Abya Ayla (no poema que encerra “Balacobaco”) também é uma forma de agir na volta do mundo sobre si mesmo.
Além desta complexa circulação - contracolonial e afrodiásporica - a temática de múltiplos sincretismos é recorrente. No caso da religião, de forma mais explícita em "Batukerê", com as referências duplas a orixás e a Deus. Já no caso da música, os sincretismos em termos propriamente de fusão de gêneros musicais, as faixas passeiam pelo “afrorró” de "Praia do Futuro" (era um forró que foi repensado a partir do afrobeats) e o reggae chorado de "Porta-Retrato da Família Brasileira", mas atinge verdadeiramente seu ápice nos breves 22 segundos da (polêmica) participação de Anitta, com um “pagode bem incrementado” que se transmuta gradualmente em um inovador rock-samba (não confundir com os já tradicionalizados e normatizados samba-rocks).
Interessante também destacar a circularidade de algumas das músicas (mas também presente no peão na capa do disco): a primeira e a última tem uma linha de continuidade, mas aquela é uma abertura mais festiva, enquanto esta é um encerramento mais solene, ambas tratando da(s) fé(s) de Salvador e de paz interior; nas faixas 3 e 4 em torno da Praia do Futuro existe uma introdução poética logo antes da música propriamente dita; a dupla “Palheiro” e “Agulha” formando alguma situação hipotética de procurar a agulha no palheiro; e, por fim, a temática poética e musical “o mundo dá voltas” une com as mesmas notas a antepenúltima e a penúltima faixas, mas com andamentos e arranjos díspares. Tais circularidades significam uma simultaneidade complexa de repetições, deslocamentos e inovações.
Tais circularidades me levam à questão da temporalidade e, portanto, à definição que eu vejo como sendo a mais precisa do título O Mundo Dá Voltas: o nome do álbum gira em torno de um projeto de musicalização da palavra de ordem "o futuro é ancestral" (em outra formulação da banda, "a ancestralidade é o futuro"). Para citar apenas um outro exemplo - e indicar que não se trata propriamente de uma originalidade do BaianaSystem e sim de uma linha de força emergente e cada vez mais destacada da Música Brasileira Contemporânea - o disco Forest Club (2024), de Kaê Guajajara, é um paradigma de algo que poderíamos chamar de futurismo indígena.
Em O Mundo Dá Voltas são recorrentes as referências a críticas sociais produzidas por contrapúblicos indígenas (em "A Laje", Emicida canta: "Ouça Yanomamis") e mais ainda contrapúblicos negros, como em "Porta-Retrato da Família Brasileira", onde ouvimos "Na minha casa é malê... / Rimando contra a maré" e"Quilombola, quilombo", enquanto em "Cobra Criada / Bicho Solto": "Eu me adaptei, mas não gentrifiquei / Eu me adaptei, mas não gourmetizei / Eu não sou aquele preto de vocês / Pro capitão do mato, bala e fogo, essa é a minha lei / A minha roupa, morto, eu customizei / Olha esse povo preto, eu que cativei (cativei) / Minha favela, não, nunca vê vocês / O grito do meu povo, não, nunca foi vocês". Tais críticas inconformistas, insubordinadas e insurgentes também se conectam à manifestação da banda de que a domesticação não anulou seu caráter de “bicho solto”.
Retornando à questão das temporalidades, em "Praia do Futuro", as relações entre passado e futuro são embaralhadas (assim como reaparece a figura do “maluco”, quem está fora da norma): "Somente um louco pode voltar ao passado / Apaixonado numa praia do futuro". Mas de maneira ainda mais densa e precisa, no poema declamado por Alice Carvalho em “Balacobaco", o futuro é visto como inevitável ("Do futuro não dá para fugir"), mas nunca se naturaliza o pessimismo com o presente (como canta Russo, em outra faixa, “A primavera chegou” - sabemos que depois da primavera chega o verão). E ainda por cima, existe o vislumbre de uma coalizão política e cultural que seja capaz de efetivar a construção do futuro ancestral, justamente no eixo norte-nordeste: "Que o teu câmbio não chega no Norte / No Nordeste tem falta de aporte / Mas excesso de cultura e raiz / Eu viajo por esse país / Em um flow retirante high tech".
BaianaSystem se tornou não apenas um hub no nosso campo musical, mas também um farol incontornável da imaginação musical brasileira, independentemente do tamanho e da centralidade que foram proporcionadas por sua “domesticação", produzindo ricos tensionamentos entre indústria cultural e suas franjas contraculturais - não era este, inclusive, o gesto original do movimento tropicalista na virada dos anos 1960 para 70?
Apenas ouçam O Mundo Dá Voltas! Um marco da música brasileira em 2025.